A teologia católica romana é
conhecida pela ênfase na tradição, que é colocada ao lado da Escritura
como uma fonte igualmente autoritária de revelação. Os reformadores, com
razão, rejeitaram essa visão e enfatizaram sola Scriptura como
a única autoridade infalível da igreja. Mas há um lugar para a tradição
na fé reformada? John Murray, ex-professor de teologia sistemática no
Seminário Teológico de Westminster, respondeu uma vez a essa pergunta:
Existe uma tradição reformada. Ela
está entesourada nos credos, teologia, adoração e prática reformados.
Cremos que ela é a mais pura apresentação e expressão do Cristianismo
apostólico. É nessa tradição que nos movemos; ela é o fluxo ao longo do
qual somos levados; é o ponto de vista que valorizamos, encorajamos e
promovemos. Não podemos nos despojar dela; ela dá direção ao nosso
pensamento e prática.
“Protestantes reformados”, Murray disse,
“não negam que existe uma tradição à qual toda a devida deferência deve
ser prestada”. Ela não é idêntica à Escritura, mas flui da Escritura.
Essa tradição e a comunidade moldada por ela “respira em certa
atmosfera, é animada por um certo ponto de vista [e] é caracterizada por
um certo tipo de vida e prática”.
“Além disso”, argumentou Murray, “o fato da tradição e de sua influência que permeia tudo no pensamento e na vida é inegável”.
Um colega de seminário se vangloriou uma
vez: “Eu nunca li comentários. Eu não confio em opiniões humanas. Eu
deixo que somente Deus fale comigo”. Ao que um cético colega calvinista
respondeu: “E você? Por que confia nas suas opiniões?”.
Nossa incapacidade de escapar de nossas
próprias limitações obriga a autoconsciência da necessidade de
reconhecer sua dependência em relação aos outros. Dependência mútua ou
interdependência não deve nos surpreender. Somos membros de um corpo,
que é a metáfora favorita do apóstolo Paulo para a igreja. Precisamos
uns dos outros (Romanos 12.4-8; 1 Coríntios 12.12-31). “São todos
mestres?”, o apóstolo pergunta (1 Coríntios 12.29). Claro que não.
Consequentemente, aqueles que não são mestres dependem dos mestres do
mesmo modo que os não-administradores dependem dos administradores, e os
não-líderes dependem dos líderes (Romanos 12.6-8). Em todo o corpo e em
toda a gama de dons, os não dotados dependem dos dotados. Deus deu
“alguns como apóstolos... evangelistas... pastores... e mestres”, mas
não todos (Efésios 4.11). Esses são dotados para que capacitem os
santos. Outros não o são.
Leia a Bíblia. Estude-a. Leia a Bíblia
toda, vários capítulos por vez. Estude intensamente, palavra por
palavra, frase por frase. No entanto, não negligencie consultar os
mestres que Deus deu à igreja agora e no passado. Não despreze os dons
de Deus. Há uma razão pela qual Calvino cita Agostinho em todas as
páginas das suas Institutas. Ele se sentia obrigado a mostrar que aquilo
que ensinava também era o que os credos, os primeiros concílios
ecumênicos, os teólogos patrísticos e os melhores teólogos medievais
também ensinaram.
A interpretação bíblica nunca deve ser
meramente uma questão de “apenas eu e minha Bíblia”. Por quê? Porque não
podemos confiar em nosso eu solitário. Não somos feitos para ser
auto-suficientes. Devemos ser ensinados por aqueles mestres que Deus tem
dado para a igreja. Isso nos leva de volta a Murray e à tradição. A
Escritura é nossa única autoridade infalível em todas as questões de fé e
prática. Contudo, ouça os argumentos do apóstolo Paulo em 1 Coríntios
1.2; 4.17; 11.16 e 14.33. O que devemos fazer com os seus apelos ao que é
ensinado “por toda parte... em cada igreja” ou à prática de “todas as
igrejas”? Ou com isso: “Contudo, se alguém quer ser contencioso, saiba
que nós não temos tal costume, nem as igrejas de Deus” (11.16)?
Observe neste ponto que o apóstolo não
está argumentando apenas com base na autoridade apostólica, no
precedente bíblico ou no princípio teológico. Pelo contrário, ele apela à
catolicidade, ao consenso. Aparentemente, a conformidade com o padrão
estabelecido entre as igrejas é um princípio digno ao qual apelar
enquanto o apóstolo Paulo busca convencer os coríntios rebeldes do que
constitui crença correta e boa ordem (14.40). Enquanto determinamos o
que cremos e praticamos, ou o que nossa congregação ou denominação faz,
devemos levar em conta o que a igreja historicamente acreditou e
praticou.
O estudo bíblico deve ter lugar em um
contexto eclesiástico, o qual se estende até os apóstolos. Lemos as
Escrituras à luz do que o pastor devidamente ordenado ensina, mas também
à luz do que os credos e os concílios, as confissões e os teólogos da
tradição católica (universal) e reformada têm ensinado. Muitos cristãos
contemporâneos malmente escondem seu desprezo pelas “formas tradicionais
de fazer as coisas”. Em contraste, Paulo exorta os coríntios a “reterem
“as tradições assim como vo-las entreguei” (1 Coríntios 11.2; 2.15;
3.6). Ele os exorta a manterem não apenas a “mensagem”, a “boa nova”, o
“ensino”, a “instrução” ou o “mandamento”, mas a “tradição”. No contexto
imediato, Paulo está falando sobre a infalível tradição apostólica que
hoje conhecemos como o Novo Testamento. Ainda assim, há uma aplicação
secundária: aqueles que vieram antes de nós poderiam errar e tem errado,
mas é sábio darmos o benefício da dúvida aos grandes homens e mulheres
de Deus que interpretaram a Bíblia antes de nós.
Essa tradição é a herança interpretativa
ou exegética daqueles que mantiveram a fé reformada. Devo ler a minha
Bíblia não isoladamente, mas consultando essa herança, seus mestres
(vivos e falecidos) e suas implicações para a teologia, eclesiologia,
ética, adoração e vida familiar. O que nossos antepassados
??eclesiásticos disseram sobre uma determinada passagem da Escritura?
Qual foi o seu consenso sobre um determinado tema doutrinário, ou sobre
uma determinada prática da igreja? A humildade exige que sejamos mais do
que “apenas eu e minha Bíblia” à medida que buscamos ser fiéis em nossa
geração.
Revisão: André Aloísio Oliveira da Silva
Original: Just Me And My Bible?
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