“Creio em Deus Pai, todo-poderoso, criador do céu e da terra.” Assim reza o primeiro artigo do Credo dos Apóstolos. É bastante peculiar que um dos símbolos mais significativos da fé cristã comece com uma confissão de que Deus é Pai. Isso, em princípio, pode não parecer uma peculiaridade, uma vez que outras religiões também chamam de pai algumas de suas divindades. Contudo, uma leitura mais atenta do contexto e do significado dessa confissão revelará que a declaração não é apenas significativa para os cristãos, mas acima de tudo exclusiva a eles.
Sem dúvida, outras religiões também chamam suas divindades de pai, porém jamais de o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Para os cristãos, a doutrina da Trindade sempre está nas entrelinhas da confissão de Deus como Pai. A razão disso se deve ao fato de que, antes de Deus ser nosso pai celestial (Mt 6.9; Ef 4.6), ele é o Pai de Jesus Cristo (Mt 26.29; Ef 1.3). Nesse caso, ao confessar que Deus é Pai, o cristão inevitavelmente traz à memória a bondade e o amor de Deus, que entregou o seu único Filho, o “unigênito do Pai” (Jo 1.14), para que todo aquele que crê no Filho não pereça, mas tenha a vida eterna (Jo 3.16). Portanto, quando os cristãos chamam Deus de Pai, eles não estão se referindo apenas à imagem de Deus como um pai celestial, mas principalmente à imagem trinitária de Deus, ou seja, a imagem do Pai de Jesus Cristo que, em favor da humanidade, entregou seu único Filho, num ato de suprema bondade e incomparável amor.[1]
Em outras palavras, ao começar a confissão dessa forma, o cristão pressupõe não apenas a bondade do “pai celestial”, mas acima de tudo a supremacia da bondade do “Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”. A intenção do cristão é expressar que, antes de tudo, ele concebe Deus como o summum bonum, isto é, como a bondade suprema que nenhuma criatura é e jamais será.[2] E isso, diga-se de passagem, é confirmado pelo próprio Jesus: “Ninguém é bom, a não ser um, que é Deus” (Mc 10.18, NVI). Entretanto, o Credo vai além da afirmação da suprema bondade divina e afirma também o poder absoluto de Deus. Afinal, não dá para esquecer que a confissão do cristão se dirige ao Deus Pai, que é, ao mesmo tempo, todo-poderoso, criador do ceu e da terra. Ou seja, o Credo não confessa apenas a suprema bondade de Deus, mas também o seu absoluto poder como criador de todas as coisas (Gn 1.1; Sl 19.1-6; At 17.22-31; Rm 1.18-23).
Assim como a confissão de Deus como Pai reflete a doutrina da Trindade, a confissão de Deus como todo-poderoso reflete a doutrina da criação, tal como foi herdada da fé judaica. A doutrina da criação parte do pressuposto de que tudo o que existe deve sua existência a um ser de grandeza máxima: Deus. Uma vez que, por definição, um ser de grandeza máxima é onipotente, então nada de concreto pode existir independentemente do seu poder criativo.[3] Em seu famoso ensaio Das Glaubensbekenntnis: ausgelegt und verantwortet vor den Fragen der Gegenwart [O Credo: interpretado e respondido à luz das questões de hoje], o teólogo alemão Wolfhart Pannenberg elucidou, de forma clara e precisa, o reflexo da doutrina da criação na confissão de Deus como todo-poderoso:
Para ser preciso, nas versões gregas primitivas do Credo dos Apóstolos, a confissão Deus todo-poderoso se expressa por meio do termo grego Pantokrator, “Senhor de tudo”, termo também empregado ocasionalmente em referência a deuses gregos, como Hermes. No entanto, muito tempo antes, o termo se tornou familiar à tradição judaica e cristã através da tradução grega do Antigo Testamento, na qual a expressão Kyrios Pantokrator era usada como tradução para yhwh Tsabaoth, um dos nomes veterotestamentários de Deus. Ademais, essa tradução mostra, mais uma vez, quanto o poder absoluto de yhwh permanecia no centro da fé judaica. Portanto, a menção Deus todo-poderoso, no Credo dos Apóstolos, confirma ainda mais a identidade do Deus da fé cristã com o Deus de Israel. O fato de nada lhe ser impossível foi mostrado de forma renovada aos cristãos, por meio da ressurreição de Jesus dentre os mortos (Rm 4.24). Entretanto, a noção de Deus como criador de todas as coisas também está presente na confissão Deus todo-poderoso. Quando a confissão credal Deus todo-poderoso, “Senhor de tudo”, foi mais bem elucidada pela adição da referência explícita à criação do mundo, esse fato, portanto, não passou de mera expressão daquilo que já estava presente na noção de Deus como todo-poderoso. Se Deus é, de fato, todo-poderoso, não apenas o mundo visível, a terra, mas também o mundo invisível, o céu, são obras de suas mãos.[4]
À vista disso, ao confessar Deus Pai, todo-poderoso, o cristão afirma dois conceitos que jamais devem ser separados: o conceito trinitário de Deus Pai e o conceito cósmico de Deus todo-poderoso, criador do céu e da terra. Dessa forma, a crença não é proferida apenas em favor da existência de Deus, mas sobretudo da existência de Deus como absolutamente bondoso e onipotente. Isso não é pouca coisa, pois equivale a dizer que, para o cristão, a confissão Deus Pai, todo-poderoso, expressa duas realidades divinas que jamais devem ser relacionadas disjuntivamente, isto é, a crença cristã não admite que essas duas realidades sejam concebidas como se fossem uma relação do tipo “ou-ou” — ou Deus é todo-bondoso ou é todo-poderoso. Pelo contrário, a relação é conjuntiva, ou seja, uma relação do tipo “tanto-quanto” — Deus é todo-bondoso tanto quanto todo-poderoso. Isso significa que qualquer tentativa de fundamentar a crença em Deus que privilegie um conceito em detrimento do outro será tudo, menos uma crença cristã.
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A crença em Deus Pai, todo-poderoso, é precisamente a confissão da unidade que há entre a bondade suprema e o poder absoluto de Deus. Sem dúvida, são realidades distintas, porém inseparáveis. Vale a pena enfatizar que, em nenhum momento, está sendo dito que ambas as realidades são indiscerníveis. Pelo contrário, é óbvio que são discerníveis, mas isso não quer dizer que sejam separáveis. Da mesma forma que existem coisas que são discerníveis e separáveis — como um galho, que tanto é distinto de uma árvore como pode ser separado dela —, também existem coisas que são discerníveis e inseparáveis — como é o caso, por exemplo, da cor vermelha, que, embora seja discernível, não pode ser separada da rosa vermelha. Logo, existem coisas que são discerníveis, embora sejam inseparáveis. Esse é o caso da crença no Deus Pai, todo-poderoso. Portanto, quanto à bondade suprema de Deus e o seu poder absoluto, diz-se que é possível discerni-los, porém impossível separá-los.
[1] Sobre a noção de Deus Pai como primeira pessoa da Trindade, bem como a estrutura trinitária do Credo dos Apóstolos, cf. J. N. D. Kelly, Early Christian creeds (London: Longman, 1972), especialmente os capítulos 12 e 13. Ao me referir a Deus Pai como “primeira pessoa da Trindade”, estou considerando estritamente o aspecto didático das fórmulas trinitárias. Seria um equívoco grotesco, para não dizer uma heresia, conceber a expressão “primeira pessoa da Trindade” a partir de algum tipo de noção subordinacionista ou hierárquica nas pessoas divinas. Sobre os equívocos com relação à enumeração das pessoas da Trindade, vale a pena conferir os comentários de Franklin Ferreira em O Credo dos Apóstolos: as doutrinas centrais da fé cristã (São José dos Campos: Fiel, 2015), p. 55-6.
[2] É que nenhuma alma alguma vez pôde ou poderá conceber alguma coisa que seja melhor do que tu, que és o supremo e o melhor bem [qui summum et optimum bonum es]” (Santo Agostinho, Confissões, VII.4.6, p. 273).
[3] Cf. William L. Craig, Apologética contemporânea: a veracidade da fé cristã (São Paulo: Vida Nova, 2012), p. 181.
[4] Wolfhart Pannenberg, Das Glaubensbekenntnis: ausgelegt und verantwortet vor den Fragen der Gegenwart (Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus Mohn, 1982), p. 38-9. Veja também Herman Bavinck, Dogmatica reformada: Deus e a criação (São Paulo: Cultura Cristã, 2012), vol. 1, p. 141-4; Franklin Ferreira, Teologia cristã: uma introdução a sistematização das doutrinas (São Paulo: Vida Nova, 2011), p. 74-82.
Trecho extraído e adaptado da obra “Inteligência Humilhada“, de Jonas Madureira, publicada por Vida Nova: São Paulo, 2017, p. 111-115. Publicado no site Cruciforme com permissão.
Jonas Madureira é bacharel em teologia pelo Betel Brasileiro e pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, bacharel e mestre em filosofia pela PUC-SP e doutor em filosofia pela USP e Universidade de Colônia (Alemanha). É professor de Teologia Sistemática e Apologética no Seminário Martin Bucer e de Filosofia na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Autor do livro Filosofia, do Curso Vida Nova de Teologia Básica, Inteligência humilhada e Tomás de Aquino e o conhecimento de Deus, publicados por Edições Vida Nova. É também pastor na Igreja Batista da Palavra, em São Paulo.
Inteligência humilhada é fruto de uma cuidadosa reflexão sobre como se relacionam o conhecimento de Deus e os limites da razão humana. Além disso, é o resgate de uma tradição do pensamento cristão que sempre se recusou a reduzir o debate entre fé e razão nos termos do racionalismo ou do fideísmo. A finalidade do conceito de “inteligência humilhada” é despertar o interesse por uma razão que ora e uma fé que pensa.
Seguindo o conselho de João de Salisbúria, Jonas Madureira subiu nos ombros de cinco gigantes da tradição cristã: Agostinho de Hipona, Anselmo da Cantuária, João Calvino, Blaise Pascal e Herman Dooyeweerd. Todos eles serviram de ponto de partida e fundamentação do conceito. Ao longo deste livro, essas cinco vozes, sobretudo a de Agostinho, são ouvidas nos mais diversos assuntos: teologia propriamente dita, revelação natural, problema do mal, gramática da antropologia bíblica, formação de um teólogo entre outros.
Publicado por Vida Nova.
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